“Rei Lear” – de Shakespeare, quem mais? – foi escrita há 400 anos. Mais ou menos na mesma época em que o rei de Portugal era informado que neste Ryo Grande, “a povoação que está feita não tem gente”. O português Jorge de Araújo, em 1608, tinha uma olaria ali onde é a Praça Augusto Severo, corrijo-me, Largo Dom Bosco.
Todo esse nariz-de-cera é apenas pra lembrar o mote inicial de “King Lear”, uma das grandes tragédias de Shakespeare ao lado de “Hamlet” e “Macbeth”: depois de um preambulozinho onde os condes de Kent e de Gloucester divagam sobre filhos bastardos (“mesmo assim sua mãe era bonita, fazê-lo foi um bom divertimento, e o filho da mãe tem de ser reconhecido”), Lear anuncia às três filhas sua decisão em dividir o reino. As mais velhas, Goneril e Regan, já casadas, enquanto a caçula, Cordélia, era disputada pelo rei da França e pelo duque da Borgonha.
O rei abre o mapa e, provido das melhores intenções, pergunta às filhas qual a que mais o ama – do mérito da resposta, da força das palavras, verá em igual medida, a parte maior do dote dividido.
Goneril começa, alegando que pro seu amor “faltam palavras” – e, na ausência delas, haja comparações: maior que a liberdade, mais valoroso do que a riqueza, mais importante do que a honra, a saúde e a beleza. “Pois bem mais que a tudo eu amo a vós”, conclui a primogênita.
Regan, astuta, pega carona na irmã – tudo o que ela falou e muito mais: “Pois minha única felicidade reside em vosso amor.”
O rei, satisfeito, concede às mais velhas dois terços iguais, um para cada uma, “nada menor em áreas ou riquezas”. Guardou o terço mais polpudo, à caçula, a preferida, aquela que seria seu pouso e repouso final na velhice.
Que tem a dizer Cordélia, para merecer mais que Goneril e Regan?
“Nada, senhor”, é a resposta da moça. “A vós eu amo nem mais ou menos do que é meu dever.”
E segue, questionando a veracidade das palavras edulcoradas das primogênitas: “Por que casam as manas se dizem que só amam a vós? Quando eu casar-me, o que me tomar a mão há de levar consigo meio amor, dever, cuidados; não me caso por certo como as manas, para amar só o pai.”
Como eu não sou inglês, nem nasci em Stratford-upon-Avon, posso resumir as conseqüências das palavras duras e sinceras da menina:
– Fudeu.
Lear pega o terço restante, divide por igual entre Goneril e Regan, e oferece Cordélia aos pretendentes, agora desprovida de dote, senão o próprio orgulho.
O final? O final é mais pra frente. Digamos que, para este momento, para o primeiro ato, o duque da Borgonha se vê surpreendido com a falta de dote. “Mas o preço caiu”, alerta o pai frustrado. “Eu lamento que após perder o pai, ora perca o marido” – é a deixa para o duque sair, literalmente, de cena.
O rei da França questiona: “É muito estranho que aquela até há pouco a preferida, motivo de louvor, seu grande apoio, a melhor, a mais cara, em um instante cometa crime atroz que desmantele tal teia de favores.”
Cordélia intervém, nega que o motivo seja vício, sordidez, desonra ou falta de castidade. O que lhe falta é tão somente a “arte fácil de falar sem verdade”.
O sobrescrito ousa misturar tudo aqui, na confiança de que o leitor há de procurar o texto original para maior deleite, mas o fato é que o rei da França, diante da fria indiferença do seu igual, tem inflamados seu respeito e amor pela donzela repudiada e a toma como rainha. Não sem antes dizer ao concorrente:
– Amor não é amor quando se mescla com questões estranhas.
Quanto ao português Jorge de Araújo, aquele, lá do início do texto, pois, o gajo desistiu da fabriqueta, “convencido de que não seria rico fazendo tijolos”, na descrição romanceada de Cascudo.
Prosa
“Verba volant, scripta manent. A palavra voa, a escrita fcia. Fica: pelo menos pra mostrar como vocês são ignorantes.”
Millôr Fernandes
Millôr definitivo
Verso
“Sei o pulso das palavras”
Maiakovski
“Fragmentos”
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