terça-feira, 13 de outubro de 2009

Uma carta para minha filha


Giulia,

Infelizmente vou desapontá-la. Não poderei estar aí nas próximas semanas como tínhamos combinado, aproveitando as férias as quais tenho direito, e outras, digamos, forçadas.

Sei que não é justo com você, nem mesmo comigo: não o destino, mas uma opção de vida – feita por mim e sua mãe, que nos separou enquanto família – já nos vem separando, você e eu, há anos. Mas você – justamente por isso – sabe melhor do que ninguém que, se nem esse imenso Oceano Atlântico foi capaz de nos separar, de verdade, nada, realmente, será capaz de nos separar.

Talvez, sim – e infelizmente, insisto –, apenas capaz de atrasar nossos encontros.

Como agora.

Me desculpe, mas não posso realizar o que sonhei, o que sonhamos recentemente: que estaríamos sob o mesmo teto entre os muitos tetos dessa cidade que é tão sua quanto esta em que vivo, sem nunca esquecer você.

Não poderemos exercitar, na prática, em companhia um do outro, o que nos foi negado na maior parte dos seus 18 anos: o prazer da companhia, do olho no olho, da mão na mão, do sorriso franco. Não poderemos tomar sorvete, nem sentar sob o sol e apenas ver a vida passar. E nem sei se você queria mesmo tomar sorvete, talvez preferisse um vinho – mas os pais são assim mesmo, me perdoe: queremos sempre nossas filhas crianças, porque assim nos sentimos realmente úteis, cuidando, protegendo, dando amor e carinho.

Não poderei lhe contar, ao vivo, o que sua irmã anda fazendo, as coisas lindas que anda fazendo e as besteiras que também anda fazendo. Não poderei lhe dizer o quanto ela ama você. Nem ouvir de você o quanto você ama ela.

Não poderei lhe dizer, também, o que eu mesmo ando fazendo, as coisas lindas que eu ando fazendo – e vivendo – e as besteiras que também ando fazendo. Nenhuma grave, lhe asseguro. Talvez a maior de todas, a mania de acreditar cegamente nas pessoas. Algumas vezes no limite da ingenuidade. “Mas, como, pai?” – você pode me perguntar – “logo você, tão experiente, com tantas histórias de vida, com tantas viagens carimbadas, mais que no passaporte, na alma?” E imagino que poderia continuar me questionando: “Logo você, que sempre se negou a não fazer nada em que não acreditasse, como quando largou o curso de Medicina aos 21 anos por não acreditar que poderia ser um bom médico, simplesmente porque não poderia fazer algo que contrariasse a sua idéia de – mais que de felicidade – de Verdade?”

Nem sei se você me perguntaria mesmo isso, nem se seria nesse tom. Mas posso imaginar que sim. Mesmo à distância, lhe eduquei para isso: para não acreditar nas aparências que os outros insistem em nos imputar, mas na verdade interior que está em nós.

Disso ouvi do meu pai a vida inteira: “É crime? Se não é, pode fazer.”

Não posso viajar agora, Giulia, porque não estaria sendo justo com algumas pessoas – inclusive com algumas que preferem distorcer os fatos antes mesmo de conhecê-los. E de outras que, por pura maldade, ou por frustração, ou por algum distúrbio mental, ou, simplesmente por mau-caratismo mesmo, levam a vida falando da vida dos outros.

“Não dê ouvidos à maldade alheia”: talvez você não reconheça esses versos. São de uma canção de Roberto Carlos. Bem antiga. Muito antes de você nascer. Me lembre de lhe mandar uma versão belíssima de Ná Ozzetti, do seu primeiro disco, de 1988 – também de antes de você nascer. Existem outras – do próprio Roberto; de Gal Costa.

É uma música de amor. E isso também lhe ensinei: se não for por amor, que sentido há? Como em outra carta, bem mais famosa do que esta – a primeira epístola do apóstolo Paulo aos coríntios – “Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.”

E continua, esse Paulo: “O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece.”

Infelizmente, Giulia, existem outras coisas malignas, invejosas, levianas e soberbas. E é por não acreditar nelas, mas saber que existem, que não posso partir agora. Apenas adiar nosso encontro.

E lembrar a você que não existe maior amor do que o de um pai pela sua filha e vice-versa.

Um beijo,

Prosa

“El escritor es el extranjero por excelencia. Sin derecho de residencia en sitio alguno, se refugia en el libro, de donde la palabra lo expulsará.”

Edmond Jabès

Un extranjero con, bajo el brazo…

Verso

“Meus amigos, se durante o meu recesso virem por acaso passar a minha amada / Peçam silêncio geral. Depois / Apontem para o infinito.”

Vinicius de Moraes

“Carta do ausente”

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