terça-feira, 6 de outubro de 2009

“Aniversário”, de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Cultura 051009

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu era feliz e ninguém estava morto.


Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,


E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,


Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,


De ser inteligente para entre a família,


E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.


Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.


Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.



Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,


O que fui de coração e parentesco.


O que fui de serões de meia-província,


O que fui de amarem-me e eu ser menino,


O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...


A que distância!...


(Nem o acho...)


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!



O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,


Pondo grelado nas paredes...


O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),


O que eu sou hoje é terem vendido a casa,


É terem morrido todos,


É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...



No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!


Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,


Por uma viagem metafísica e carnal,


Com uma dualidade de eu para mim...


Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!



Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...


A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,


O aparador com muitas coisas – doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado –,


As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...



Pára, meu coração!


Não penses! Deixa o pensar na cabeça!


Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!


Hoje já não faço anos.


Duro.


Somam-se-me dias.


Serei velho quando o for.


Mais nada.


Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...



O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...”

[Publicado originalmente no número 27 (junho-julho de 1930) na revista Presença, de Coimbra, era assinado por Álvaro de Campos, talvez o mais parecido com o próprio Pessoa entre seus heterônimos - e datado 15 de outubro de 1929, embora saiba-se, através do próprio Pessoa, que foi escrito em 13 de junho, portanto, dia real do aniversário do poeta.]

Prosa

“O drama de uma vida pode sempre ser explicado pela metáfora do peso.”

Milan Kundera

A insustentável leveza...

Verso

“Aquilo que amas muito não será tirado de ti / Aquilo que amas muito é tua vera herança”

Ezra Pound

“Canto LXXXI”

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