quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Desgostos de Agosto

Cultura 100809

Às cinco horas do 26 de agosto de 1856, duas brasileiras desembarcam em Bruxelas, vindas de Paris, de onde tinham partido dois dias antes. A primeira parada foi em Valenciennes, onde jantaram e a mais velha teve ocasião de visitar a catedral. Em Quiévrain, já na Bélgica, apresentaram seus passaportes e trocaram de trem – sempre viajando na primeira classe.

Em Bruxelas, se hospedaram num certo “Hotel da Rússia”. Acharam o quarto “belo e confortável”, e, apesar do cansaço, ainda encontraram forças para conhecer a cidade – visitam o Palais des Beaux-Arts, o Palais de Justice e o Hôtel de Ville. No primeiro, ficam impressionadas especialmente com uma “notável estátua de Hércules”.

A mais velha tem 45 anos. Dali a poucos meses completará 46. A mais nova tem muito menos, uma adolescente de 16.

É a primeira vez que mãe e filha viajam sozinhas. Há um outro filho, 13 anos, mas ele ficou no Brasil, e desde abril não se vêem.

É para este filho que a mãe escreve, ao fim do dia:

“Caro filho e irmãos do meu coração, o mês de agosto, que (sabem vocês) é tão funesto à minha felicidade, pela tríplice perda que imprimiu em minha existência, começou este ano mais triste e doloroso do que nunca. O coração confrangido, o espírito sempre abatido pela dilacerante recordação da morte da melhor das mães, eu via aproximar-se o primeiro aniversário do dia que a roubou à minha ternura.”

Que tríplice perda é essa, que a senhora refere?

Primeiro o pai, assassinado no Recife, em 17 de agosto de 1828. Depois a morte do companheiro, em 29 de agosto de 1833. E, um ano atrás, 25 de agosto de 1855, a mãe.

Quase três décadas entre a primeira e a terceira morte tinham se passado, mas a senhora é uma mulher de letras, alguém sensível e, definitivamente, à frente do seu tempo. Embora não seja extraordinário o casamento aos 13 anos, naqueles tempos, não pode ser considerado comum que tenha retornado à casa dos pais poucos meses depois e, aos 18, ter tido a ousadia de morar junto com um colega da Faculdade de Direito. Com quem tem dois filhos – esta, com quem viaja pela Europa, e aquele, para quem escreve a carta rememorando a tragédia que lhe empresta o funesto mês: num agosto perde o pai, num agosto encontra um novo companheiro, num agosto perde o pai de duas crianças, uma delas recém-nascida.

É por isso que, anos depois, a “costumeira magia” que Paris exerce sobre ela perde o encanto, tornando-se “monótona e quase insuportável, à medida que o triste aniversário se avizinhava”.

Agosto era mesmo um mês de desgostos para aquela mulher, que se obrigava a novas viagens, em busca de “um horizonte mais amplo, em atmosfera mais livre”, para curar a dor recorrente e trabalhar um luto que se renovava sem descanso: “lembrava-me os rápidos momentos de minha felicidade, que infelizmente se esvaíram, pobre de mim! apenas eu começava a apreciá-los”.

A mulher era Nísia Floresta Brasileira Augusta – para muitos, a Eva da literatura dita “potyguar”, a madrinha escolhida por Henrique Castriciano para a sua cadeira na Academia de Norte-rio-grandense de Letras.

Não era a primeira vez que estava na Europa – de 1849 a 1852 morou ali com os dois filhos, Augusto Américo (o destinatário da carta, e que quase morria de febre tifóide no agosto, sempre agosto, de 1850) e Lívia Augusta, batizados assim em homenagem ao companheiro e pai, Manuel Augusto de Faria Rocha.

Nesse 1856, no mês anterior, às vésperas de agosto e antes de escrever a carta ao filho no quarto belo e confortável do Hotel da Rússia, ela se descreve, num auto-retrato caminhando às margens do Sena, “com o coração inchado de lágrimas, com a cabeça encurvada sob um fardo de melancólicos pensamentos que levavam para além do Atlântico toda minh’alma”.

Um ano depois, insiste na associação com o mês desgostoso: “Agosto chegava ao seu fim. Uma temperatura de 30 graus parecia quase sufocar os habitantes de Paris.”

Nísia morreria na França, não em agosto, mas em abril.

Mas, ironicamente, é em agosto que seus restos mortais são embarcados em Marselha no navio “Loide-Brasil”, sessenta e nove anos depois de sua morte, numa homenagem duvidosa que fazem seus conterrâneos.

O navio só chegaria ao Brasil no mês seguinte, em setembro de 1959.

Em mais uma homenagem questionável e numa ironia circular e autofágica, Nísia Floresta Brasileira Augusta – que nasceu Dionísia Gonçalves Pinto, em Papari – é sepultada mais uma vez, sem descanso, numa cidade que desde 1948 tem seu pseudônimo.

PROSA

“Assim, no entanto, você pôde viver esse amor do único jeito que era lhe possível, perdendo-o antes que ele acontecesse.”

Marguerite Duras

A doença da morte

VERSO

“Descobre-se um amor / na iminência de perdê-lo.”

Carpinejar

“Terceira elegia”

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