terça-feira, 30 de junho de 2009

Embriaguez em Lisboa

Nunca dei muita importância à Lisboa. Me pareceu mais interessante vista do alto, ou quando, pousados os pés na pista do aeroporto, manhã outonal de mil e novecentos e muitas décadas, ainda não tinha meus pés pousados realmente nela.

Depois, aquela profusão de praças, carros, ônibus – atulhando a visão. Diante de Madri, que eu só conheceria depois, Lisboa era uma cidade velha, caquética, mal-ajambrada – quase como uma daquelas favelas, fedendo a bolor e urina, esse tipo de lugar que a gente tem vergonha de assumir que tem nojo, mas evita a passagem com certo cinismo, mas não impunemente, porque a moral, porque a consciência, porque etc.

Mas, três meses sem ver o mar e foi Lisboa quem me reconduziu ao encanto que é ver o mar e saber que existe um momento na vida em que não ver o mar é um desencanto a mais na solidão. Inda mais quando se assiste ao mar engolfando rio e virando oceano e horizonte infinito. Inda mais quando é o Tejo, o rio particular de todos nós, aldeões, a ser engolido por um Atlântico ainda remanso, antes de virar, tormenta, onda, vagalhão. Um rio inteiro, grande por magnífico, magnífico por secular. Secular porque sim.

Do que ainda me lembro, e tão pouco me lembro, Lisboa a partir de um automóvel não é a mesma de quando percorrida – melhor dizendo, tateada – a pé. Passo miúdo, passo apressado, passo junto ou desconjuntado, a pé.

Talvez eu diga isso, agora, quase outra encarnação da memória, por um atalho brusco e sem sentido na direção do ensaio sobre a cegueira do senhor Saramago, o português moderno por excelência e distinção. Não pelo livro em si, que de Lisboa tem pouco, mas pela importância do tato diante da visão, da definição exata das pontas dos dedos frente ao esboço do olhar.

Todos modos, acredito piamente que sabe-se mais de Lisboa no interior do elevador de Santa Justa do que olhando o Tejo e suas pontes, que na verdade são apenas duas e que na verdade é apenas uma e haverá quem diga que se parece com a Ponte de Todos e não o contrário. (Mas que, verdade-verdadeira, são muitas pontes, milhares delas, centenas delas, dezenas dela, uma única, enfim, porque muitos são os pontos de onde guardá-la, mas sempre unitário é o olhar.)

Em Lisboa (e também creio piamente, que hoje acordei quase devoto), ou você passa a mão pela rachadura das paredes, ou você sente o entalhe do tempo no madeirame das casas, ou você fere os dedos no ferro trabalhado do Santa Justa – ou então, você não sente nada e se ilude com uma indigestão de paisagens abertas.

Porque, dizem, a visita primordial é ao Mosteiro dos Jerônimos, e à Torre de Belém, mas aquilo sempre me pareceu uma espécie de Disneylândia Gótica, um épico arquitetônico, enfim, grandiloqüente por demais, sonoro por demais, ruidoso por demais, fake por demais.

Houve um tempo, também, em que o que mais me incomodava em Lisboa era sua língua. O rumor da sua língua. A entonação da sua língua. A língua de suas ruas, carregadas de insinuações verdes, de prosódias amarelas. Com esse arremedo de identidade comum, de berço comum, de lugar comum, de decadência comum – reino e colônia amalgamados numa tristeza, saudade sem fim. Porque quando se é jovem queremos, desejamos, almejamos, exigimos, enfim, a incompreensão.

Quando eu desci em Lisboa, naquela manhã de outubro-outono, um dos passageiros estava bêbado. Da mesma embriaguez do cônsul britânico em Cuernavaca no Dia dos Mortos, como se saído direto das páginas de “À sombra do vulcão” para um tête-à-tête com Almada-Negreiros – em frente a A Brasileira. Era um homem realmente bonito e já dava seus primeiros passos para o dia em que chegaria à velhice onde, talvez, perderia também parte do fascínio dos habituados a pôr à mesa a própria beleza. Por enquanto, estava vestido elegantemente, ainda mais com a gravata elegantemente desconjuntada como se desejosa em combinar com a embriaguez do seu proprietário. Tinha, explicitamente, a elegância dos que se destacam naturalmente do rebanho, dos que optam alçar a cabeça no prumo das nuvens e não enterrar o focinho na providência segura do pasto. Desconfio que misturou pastilhas medicinais com álcool, tão irresistível era sua bebedeira. Desconfio que tenha passado a mão na bunda de uma aeromoça, a mais bonita, a mais madura, a mais magra e alta. Desconfio que ela gostou, mas é das aeromoças a cobrança de respeito pelos passageiros, pois. Por isso o rosto amuado da menina – aliás, toda a equipe estava visivelmente irritada com o sujeito. Que, ainda no ônibus que nos levaria da pista para a alfândega, pegou o chapéu de uma senhora, colocou na própria cabeça, continuou rindo, indiferente à raiva que provocava no mundo, sem se preocupar se seria preso, algemado, interrogado, sem se importar, inclusive, se havia desembarcado em Lisboa ou alhures. Porque, como em qualquer cidade, desembarcar em Lisboa pode ser desembarcar em lugar algum, voltar ao ponto de partida, de onde nunca se parte realmente.




PROSA

“Estrangeiros com falas esquisitas e traquitanas estranhas percorriam o país no faro das cidades maiores.”

Giovanni Sérgio

Perigo Iminente

VERSO

“Amado, somos como os deuses: / Nosso é o mundo inteiro!”

Marina Tsvetáieva

“À felicidade”

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