sábado, 13 de junho de 2009

Adivinhe quem vem para o café-da-manhã: Rubens Lemos Filho

Rubinho Lemos Filho dispensa apresentações, mas duas ou três coisas merecem ser ditas, por mais óbvias que possam ser. Uma, que o secretário de Comunicação, identidade que assumiu há anos, termina por esconder, no dia-a-dia, o cronista ágil e íntimo da palavra que verdadeiramente é. Duas, que vez ou outra se refugia em seu blog (www.rubenslemos.com.br) e, ao se deixar levar pela ausência do peso do cargo, brinda seus leitores com textos que se caracterizam por uma fluidez admirável, onde parte, às vezes, de um tema distante para encadeá-lo a outro surpreendentemente próximo. Três, que segunda-feira, 15, lança livro no TCP da Fundação Zé Augusto. Óbvio, vamos.

CAFÉ-DA-MANHÃ EM ENCANTO
Só você, Mário Ivo. Só você, a sua incomparável paz de espírito, para me permitir o reencontro com a mais frugal das refeições e a mais incomum para mim. Há muitos anos, por força do estresse que me domina inteiramente, não tenho tomado café-da-manhã.
Acordo sobressaltado, tomo um banho gelado e corro para a aprazível rotina de todos os dias. No máximo, um copo de vitamina passada pela nutricionista, um beijo na mulher, um cafuné no cachorro e rua. O filho já tem ido ao colégio, bem antes, também sem tomar seu próprio café.
Café-da-manhã agora é convenção, deixou de ser refeição. Minha avó me ensinou que nada deve atrapalhar a refeição, o estômago vai cobrar depois. Não segui a lição porque a gastrite insiste em gemer. Mas vamos lá: café da manhã agora é pretexto para se fechar negócios, cobrar dívidas, costurar conchavo. Ganhou um certo charme, ainda que seja selvagem o apetite dos engravatados.
Tento lembrar de um café-da-manhã tranqüilo, relaxado, sem ninguém ou nada a incomodar. Aí eu teria de ligar para mamãe e perguntar como eram os cafés-da-manhã nas minhas mamadeiras, quando eu tinha um ano de idade.
Também não devem ter sido agradáveis. Afinal, estávamos eu, ela e o meu pai, exilados no Chile, fugindo da Ditadura e ameaçados por outra repressão que findou vencendo quando já havíamos partido: Pinochet passou a servir café-da-manhã em forma de porrete, choque elétrico e fuzilamento macabramente surrealista: Num imenso estádio de futebol.
Antes de você, Mário Ivo, me ligar abrindo o cardápio, estive no show de Roberto Carlos no Ginásio Machadinho cheinho de goteiras. Como torci, Mário, que caísse um temporal enxurrando os cabelos ornamentais de algumas dondocas desvairadas. Elas berram desafinadas, sacodem os braços, exibem suas celulites em minissaias wanderléicas.
São deseducadas as dondocas em pleno show. Sacodem-se batendo na mesa vizinha, discutem com os garçons como se num botequim estivessem, gritam como se para mostrar que a superioridade delas repousasse na conta bancária.
Aí vem o Rei, naquele sorriso protocolar, assanhar as dondocas e pedir, pela milésima quinta vez, um café-da-manhã, para eles dois (ele e não sei quem), mas só amanhã de manhã.
Não pude esperar porque tinha de trabalhar sem tomar café-da-manhã. Saí de casa ainda lembrando a raiva dos flanelinhas que loteiam estacionamentos como latifundiários vestindo camisetas de eleição. Voto em quem garantir um estacionamento tranqüilo para os neuróticos feito eu.
Que deveriam mirar nos sertanejos para se acalmar. Quando vou ao interior, fico em casas antigas, de alpendres largos, salas ornamentadas por fotos antigas de gente que já morreu, de cozinhas fumegantes.
Só lá eu como um pouquinho pela manhã. O horário é quase de almoço, 10h30, 11 horas quando eu acordo, vencedor imaginário de todos os meus problemas, Jerônimo dos açudes sangrados, das capoeiras verdejantes.
A mesa da casa dos meus sogros faz inveja a Ojuara, de Nei Leandro: Tem leite tirado no raiar do dia, sucos variados, tapioca, queijo de coalho, queijo de manteiga, uma república de queijos, beiju, carne assada, costela de cabrito, bolo preto, bolo da moça, bolo da descabaçada, doce de goiaba, milho cozido, milho assado.
O melhor da mesa é a presteza de minha sogra Chiquita, de avental, uma executiva do Alto Oeste. Dá ordens às cozinheiras, prova ela própria cada prato, resmunga com os meninotes que metem a mão nas delícias expostas, me oferece pão assado, pão com manteiga do sertão, alfenim, até carne moída.
Encanto, a 450 quilômetros de Natal (quando estou lá gostaria que ficasse a 900), é a terra do meu descanso. Vou lá no máximo duas vezes ao ano, pelas razões que não me permitem tomar café-da-manhã como um ser humano no dia-a-dia infernal.
Da próxima vez, pretendo pegar o bule de leite fervendo e nele jogar o celular, um eficiente inibidor de apetite. A pior das invenções, é patrulheiro, invasivo, perseguidor.
Um dia eu não vou usar celular.
Ainda que seja no Encanto, lindeza na grafia, aumentativo de sossego.
Bom café-da-manhã, Mário Ivo.
E não precisa convidá-lo para o lançamento do meu livro.
Você vai, é óbvio. [Rubens Lemos Filho]



PROSA
“O tempo que lá, para os homens, era guerra, intriga de tristes paixões, aborrecimento azedo e frenético, aqui era calma atônita, imemorial.”
Pirandello
Novelas para um ano
VERSO
“a vida dói, a vida fere, / mas é bela a vida é bela.”
Luís Carlos Guimarães
“O passarinho da...”


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