segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Um coração de rubis que palpite

Já está no YouTube cenas de “Little ashes”, suposta história de amor entre o pintor surrealista Salvador Dalí e o poeta Federico García Lorca. O cineasta Louis Buñuel também aparece.
Robert Pattinson (o amigo de Harry Potter) interpreta Dalí; Javier Beltran é Lorca; e Matthew McNulty (que interpretou o vocalista do Joy Division, Ian Curtis, em “Control”) incorpora Buñuel.
Nascido Salvador Domingo Felipe Jacinto Dalí Doménech Cusí y Farrés, em Figueras, na Espanha (1904), Dalí transfere-se para Madri em 1919, onde encontra um grupo de futuros grandes artistas na residência dos estudantes, entre eles Buñuel e Lorca.
Na biografia escrita por Antonio Olano (“Adiós, Dalí”, Maeva Ediciones, 1989), o pintor explica o encontro com o poeta:
“O fenômeno poético em sua totalidade e em ‘carne viva’ surgiu subitamente diante de mim feito carne e ossos, confuso, injetado de sangue, viscoso e sublime, vibrando com milhares de fogos de obscuridade e de biologia subterrânea, como toda matéria dotada da originalidade de sua própria forma.”
Vou encurtar o discurso, por demais surrealista, e ir pros finais:
“E quando eu sentia o fogo incendiário e comunicativo da poesia do grande Federico elevar-se em loucas chamas desgrenhadas, procurava sufocá-las com o ramo de oliveira da minha prematura velhice antifaustiana, enquanto preparava as grelhas do meu prosaísmo transcendental, sobre as quais, quando chegasse o dia, quando restassem apenas as brasas brilhantes do fogo inicial de Lorca, eu chegaria para assar os fungos, costelas e sardinhas do meu pensamento, para satisfazer por uns cem anos minha fome espiritual, imaginativa, moral e ideológica de nossa época.”
(Se algumas almas pias dizem que eu escrevo confuso, revejam seus conceitos.)
Pois, pois, “fogos de obscuridade”, “loucas chamas desgrenhadas”, “grelhas”: o fogo perseguia Salvador Dalí. Um dia perguntaram a Jean Cocteau o que ele salvaria de um incêndio no Museu do Prado – “O fogo”, respondeu Cocteau. Perguntaram o mesmo a Dalí – “O ar. Especialmente aquele presente em ‘Las meninas’, de Velázquez”, respondeu.
Anos depois, comentou: “Eu disse que salvaria o ar porque deram a oportunidade de responder, primeiro a Cocteau. Provavelmente, se tivessem me perguntado antes eu também teria respondido o fogo.”
Em 1984, enquanto dorme em seu castelo em Púbol, na Catalunha, um incêndio toma conta do quarto – não se sabe se uma tentativa de suicídio ou um incêndio criminoso.
FOGUEIRA DAS VAIDADES
E, no entanto, confessou ao biógrafo: “Não se deve queimar nada! Por isso sou contra os fornos crematórios. Depois de conservar tudo, se deve colocar as partes do corpo o mais próximo possível umas das outras. Porque, se vem a Ressurreição da carne e sua cabeça está em Paris e os pés em Badajoz, será mais difícil unir as peças. Isso aconteceu com Goya, cuja cabeça desapareceu.”
Voltando ao affaire Dalí-Lorca, Olano pergunta a Dalí se Lorca estava apaixonado por ele, que desconversa, para logo depois assumir: “Sim, estava apaixonado. Mas a coisa permaneceu na mais pura amizade.”
(Em 1927, Lorca aparecia em público como namorado de Ana Maria, irmã de Dalí, com quem, realmente, trocou muitas cartas de amor.)
O pintor confessou que desejava o poeta, “mas nunca me deixei levar por sentimentalismos com os amigos”. Ainda mais porque “sou de uma fidelidade tão grande em relação à minha esposa que, ainda que ninguém acredite, posso garantir algo que é a mais pura verdade: nunca fiz amor com outra pessoa senão com Gala. Jamais, jamais, jamais! A primeira e nunca mais!”
Gala (nascida na Rússia como Elena Diakonova – ou Dakonoff) era esposa do poeta Paul Éluard. Em 1929 o casal viaja, junto com amigos franceses de Dalí, até a famosa casa de Cadaqués (onde o pintor e Buñuel filmaram, dois anos antes, o clássico “O cão andaluz”). O poeta francês volta sozinho a Paris. Gala-Dalí Nunca se separaram. Até a morte da russa, em 1982. Sete anos depois morre o pintor.
Um ano antes de morrer, Gala ainda se encontrava com alguns de seus inúmeros amantes, entre eles um jovem ator americano que interpretou Jesus na versão teatral de “Jesus Cristo Superstar”. Dalí sempre fingiu ignorar as relações da mulher.
E sempre a retratou em inúmeros quadros, entre eles “La madona de Port-Lligat”, presenteado ao Papa Pío XII. Chegou a dizer, em um dos seus freqüentes arroubos escandalizadores: “Amo apenas duas coisas: Gala e o dinheiro”.
Ou, numa versão mais extensa: “Amo a Gala mais que a meu pai, mais que a minha mãe, mais que a Picasso e mais, inclusive, que ao dinheiro.”
Mais poético, explicou o oferecimento de um quadro à esposa: “Coração, que queres? Coração, que desejas? – me dizia minha mãe cada vez que se inclinava sobre mim. Para Gala eu tenho repetido: Coração, que queres? Coração, que desejas? E ela me tem respondido: um coração de rubis que palpite.”



PROSA
“Eu não criaria o homem de modo pior do que ele é, nem sua condição mais miserável do que é.”
John Donne
Meditações
VERSO
“Ao longe ouço a trompa da caçada às sereias
E um peixe vermelho faz todo o oceano tremer.”
Murilo Mendes
“Estudo para...”

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