terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Crônica de duas mortes evitadas e de uma morte-vida provinciana

Ana Maria Cascudo encontra-se mergulhada nas pesquisas sobre o Coronel Cascudo, Francisco Justino de Oliveira Cascudo (1863-1935), seu avô paterno.
A conversa é por telefone e eu comento episódio em que o espírito solidário do Cel. Cascudo salvou-lhe a vida: alguém que ele ajudara numa ocasião, anos depois o alerta para uma emboscada.
Não lembro, claro, onde li, que minha memória é das mais fracas e ralas. Mas não é difícil de achar: depois de folhear as muitas edições da série “O livro das velhas figuras” (já em seu décimo volume), volto à pesquisa inicial, “O tempo e eu” (Imprensa Universitária, 1968).
Está lá, na página 289: viajando a cavalo para Campo Grande, provavelmente no mesmo ano em que se casou com Ana Maria da Câmara Pimenta, o então mascate Francisco apeia numa casinha em Paraú pra tomar um café, esperar a chuva estiar e retomar viagem. Ali, encontra um homem de meia-idade que torcera o pé, e não podia voltar pra casa, onde o esperava a esposa doente. O burro do homem fugira, a casa ficava a mais de duas léguas, o remédio que viera buscar para a mulher tornado inútil.
Seu Francisco – que se tornaria alferes só uns quatro anos depois, em 1892 – não contou conversa:
“– Peixe Branco [o nome do cavalo] pode com os dois”.
Quase dez anos depois, o alferes, agora tenente, está em diligência pelos arredores de Acari, quando lhe aparece no meio do mato um velho, que lhe diz:
“– Seu alferes, não siga esse caminho porque naquele corte de pedras está um grupo de cangaceiros, de tocaia, esperando Vossa Senhoria. Beberam cachaça numa venda perto da minha propriedade, dizendo que hoje urubu enjoa carne de soldado. Escondi-me aqui há umas três horas para avisá-lo!”
Era o homem do pé luxado.
E não seria a única vez que o pai de Cascudo escaparia da morte. Já pai de Antonio Haroldo e Maria Octávia (os irmãos que Cascudo, Luís, praticamente não conheceria), o tenente do Batalhão de Segurança deste Ryo Grande está em sua casa, em Caicó. Já tinha comandado inúmeras patrulhas que resultaram na morte de cangaceiros, um deles o famoso Pilão-Deitado.
Pois, um sobrevivente do bando jura morte ao militar. Noite, posta-se diante da janela do condenado, e, para sua surpresa, vê quando a silhueta de Francisco Cascudo debruça-se, para voltar à mira da arma com um bebê no colo – era Maria Octávia.
O cangaceiro muda de posição, buscando o tiro certeiro, uma e várias vezes. Como o pai não se afasta da filha, o bandido desiste, não quer matar uma alma inocente. Preso pouco tempo depois, conta o episódio para o tenente, que o perdoa e o manda embora, livre. “O cangaceiro foi ser lavrador pacífico”, contaria o filho Luís, muitos anos depois, no já citado “O tempo e eu”, revelando o apelido do ex-criminoso (“Ás de Ouro”) – “Anos e anos depois, vindo a Natal, hospedava-se em nossa casa, av. Jundiaí. Meu pai era comerciante, deputado, proprietário de jornal. Ás de Ouro só o chamava ‘seu Alferes’.”
Da morte violenta escapou o pai de Cascudo, mas não da ingratidão. Quando teve que hipotecar a famosa Vila Cascudo (“nada lhe ofereceram e nada solicitou”, lembrou o filho), terminou perdendo a propriedade e empobrecendo de vez. Justo o homem que, como comerciante, contrariava a lógica do lucro a qualquer custo – com a palavra, de novo, o filho devoto: “Primeiro representante da Ford Motor em Natal, dispensava, invariavelmente, sua percentagem, barateando o carro para popularizá-lo na região. Em agosto de 1914 o querosene ‘subiu’ para 400 e 500 réis a garrafa, manobra de meia-dúzia de especuladores ávidos. Meu Pai comprou uma grande ‘partida’ abafando o monopólio. Fez o mesmo com a farinha, adquirindo-a no Maranhão e forçando ‘a baixa’.”
O mesmo dinheiro que proporcionou a Cascudo uma das melhores bibliotecas deste Ryo Grande de antão, base e esteio do seu futuro brilhante, quando veio a lhe faltar, impediu-o de partir desta província. “A pobreza de meu Pai, altiva e nobre, não me permitia abandoná-lo e viajar para o sul, ‘vencer no Rio’. Filho único, devia retribuir em assistência quanto tivera em pecúnia e carinho. Fiquei, definitivamente e sem recalques, provinciano.”
No mesmo livro, páginas 284-5, sem revelar-se explicitamente como um dos personagens, Cascudo revive o reencontro de dois velhos amigos, um que partiu, outro que ficou, através do seguinte diálogo:
“– Veja a sorte! Você é inteligente, culto, estudioso, morto-vivo na província. Eu, tão inferior, com todo esse batuque consagrador!”
“– É verdade! Mas tenho tempo de ler, à noite, nossos velhos poetas gregos e nosso antigos volumes franceses, e você, há trinta anos só lê relatórios e pareceres!...”



PROSA
“A Literatura Brasileira deve muito mais à Miséria, ao Pauperismo, que ao equilíbrio econômico.”
Câmara Cascudo
Na ronda do tempo
VERSO
“Saudade dos mortos.
Envelheço
prematuramente.”
Augusto Massi
“A mágoa de permanecer”

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