sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Cinco dias, cinco noites

Escrever uma coluna de jornal diariamente é, com o perdão da expressão e palavra, um pé no saco. Não, não é bem um pé no saco, a não ser pela dor irremediável que o tal pé no tal saco inevitavelmente provoca.
Um tormento, pois, para usarmos termo menos ofensivo aos olhos mais sensíveis. Embora “saco” seja palavra ouvida livremente a três por quatro por aí, daí que nada demais que seja lida, por aqui.
Enfim, mais difícil a atividade jornaleira é, ou torna-se, depois de uma temporada de férias (apenas cinco dias) longe de toda e qualquer notícia publicada, em jornais, revistas e na internet. Vou escrever sobre o quê? Me pergunto, bem sabendo que só amanhã o caro leitor ou a cara leitora poderão, se quiserem, me dar uma resposta – e aí meu “problema”, enquanto colunista já será bem outro.
Parêntesis para esta questão temporal: escrevemos hoje para o leitor ler amanhã e nos esquecer no dia seguinte, depois de amanhã, quando já estaremos na labuta da coluna de depois de depois de amanhã.
Coisa de louco. Ou de Sísifo, aquele sujeito da pedra, eternamente condenado a levar a rocha pra riba de uma montanha, vê-la despencar ladeira abaixo, para buscá-la e levá-la uma vez mais pro topo.
Mas, estou enrolando, assumo. Quem tem que responder a pergunta sou eu mesmo. Então, rapaz, escrever sobre o quê? Mais fácil elencar sobre o que não escrever:
- Não posso escrever sobre o Carnaval Multicultural desta Capital Espacial, tendo em vista que aqui não permaneci e nem notaram minha ausência (embora amigos tenham me contado boas coisas sobre o “Bruxos, carecas e lobisomens”, de Ponta Negra – esqueci dos poetas, os primeiros do bloco, mas deixa pra lá).
- Tampouco posso contar nada sobre Pirangi, pois de lá, muito propositadamente e ajuizadamente fugi e não me lamento.
- Carnaval do Rio? Também não fui nem liguei a TV. Me disseram que foi a Salgueiro a campeã e que o enredo era sobre o “Tambor”. Achei muito doida a escolha, mas talvez influenciado pelo que me contaram sobre um Carlinhos Brown furioso batucando, claro, um tambor.
- Sobre o Oscar hollywoodiano apenas passei uma vista em alguma das muitas listas publicadas nas páginas da web, que vi apenas ontem, desplugado que estava de qualquer conexão internáutica durante os cinco dias, com a graça do bom deus.
- Não fui ao cinema, não sei o que está passando nas telonas dos shoppings.
- Não li um livro sequer, uma revista inteira, na abri página de jornal, não conversei com ninguém que não fosse apenas uma simples troca de amenidades e banalidades, nada que possa interessar ao clássico leitor de jornal, sempre ávido por uma fofoca, um escândalo, uma tragédia anunciada. Aliás, minto: li umas poucas linhas de dois livros que levei na bagagem. Vou reproduzi-las aqui, para preencher espaço enquanto não arrumo um tema para desenvolver. A primeira citação é de Claudio Magris, em “O senhor vai entender”:
“Agora, sem mim, ele vai se dar conta – essas mulheres que vão prestigiá-lo toda vez que ele lê algo em público ou faz uma conferência e depois o bajulam, o afagam –, aquelas estúpidas adoram quem sabe rimar duas palavras e se iludem achando que talvez lá no fundo haja um grande coração – e o abraçam, o puxam para cá e para lá, no final uma delas vai ficar com seu paletó nas mãos, outra com um braço, e o fazem autografar os livros, escrevem-lhe cartas exaltadas, e ele responde a todas, também em tom inspirado.”
A segunda citação é de Orhan Pamuk, em “A maleta do meu pai”:
“Como sabem, a pergunta que mais fazem a nós escritores, a pergunta predileta, é: por que você escreve? Escrevo porque tenho uma necessidade inata de escrever! Escrevo porque sou incapaz de fazer um trabalho normal, como as outras pessoas. Escrevo porque quero ler livros como os que eu escrevo. Escrevo porque sinto raiva de todos vocês, sinto raiva de todo mundo. [...]Escrevo para ficar só. Talvez escreva porque tenho a esperança de entender por que eu sinto tanta, tanta raiva de todos vocês, tanta, tanta raiva de todo mundo. [...] Escrevo porque jamais consegui ser feliz. Escrevo para ser feliz.”
O livro do italiano Claudio Magris é uma breve autocrítica, um curto relato (55 páginas) de inspiração autobiográfica: usando o mito de Orfeu e Eurídice, Magris aproveita para exorcizar sua própria relação com a mulher, a também escritora Marisa Madieri, morta em 1996. No livro, ele dá voz à falecida, expondo sem autopiedade seu próprio ego de escritor.
O livro do turco Orhan Pamuk é na verdade uma reunião de três discursos, um deles – do qual provém a citação – o proferido por Pamuk durante a cerimônia de entrega do prêmio Nobel de Literatura de dois anos atrás. Me chama atenção, a exposição que o escritor faz de suas próprias neuras quando assume “Escrevo porque sinto raiva de todos vocês, sinto raiva de todo mundo.”
São as entranhas de dois bons escritores que, quando escrevem explicitamente sobre eles mesmos, sem o filtro da ficção, terminam por se apresentarem mais normais, mais comuns a todos nós, seus leitores.
Daí que, nesta sexta-feira, com gosto e ressaca ainda de quinta, quarta-feira de cinzas, com notícias de mortes que prefiro não comentar, aproveito para fechar a coluna com essa sugestão: comprem livros. Comprem sempre livros. Leve-os, inclusive, em suas viagens de férias: mesmo que vocês não os leiam, inteiramente, talvez folheiem alguma coisa e sempre há alguma coisa boa para refletir em poucas linhas de um volume inteiro.



PROSA
“É lindo ser amada por um neurótico, dá segurança.”
Claudio Magris
O senhor vai entender
VERSO
“Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.”
Antonio Cicero
“Guardar”

Nenhum comentário:

Postar um comentário